sexta-feira, 22 de junho de 2018




MOSCOU COMO O DIABO GOSTA


Mikhail Bulgákov num país onde rola a Copa do Mundo. Onde estará Woland?

Acredito que livros sabem traçar seu destino.  E não precisam ser cult, best seller ou besta célere na corrida pelos mais vendidos – aliás, fico com o pé de curupira quando me deparo com fenômenos anunciados, o boom literário e otras cositas más que regem o mercado livreiro. Me sinto leitor avulso e sem compromissos com a academia e com a crítica pouco especializada ou corporativa. Leitura pressupõe liberdade para ler.

Depois de ter sido escrito há 78 anos, em Moscou – não foi publicado à época por ser proibido pelo regime soviético – “O mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, chegou na minha casa, trazendo alegria bem maior do que a Copa da Rússia. Acabei de ler este livro inspirador no domingo do jogo do Brasil com a Suiça, de placar melancólico para a moçada que estava no estádio, principalmente.
No primeiro momento, passou uma nuvenzinha cor de chumbo, sob as minhas neuras de leitor. Por que não li Bulgákov antes? E eu mesmo tento me consolar dizendo que só o li agora, pois este era o momento do encontro.

A primeira tradução para a língua portuguesa foi em 1991, 20 anos depois do fim da União Soviética e assim Portugal abriu passagem para Mikhail Bulgákov ser descoberto pelos países lusófonos. Queria ser como alguns leitores admiráveis como minha querida amiga Meg Guimarães e a mana Elis Marchioni, que se iniciaram em “O mestre e Margarida” bem ante de mim. Daí me sinto um ser anacrônico que tenta se convencer ser um ser atemporal. O que fazer?

O melhor presente é se largar nessa aventura dos livros. Não apenas na leitura em si, mas também saber do autor e dos bastidores do livro. Isso me fez mais lento como leitor que agora sou: o oposto de mim há muitos anos atrás, um devorador de romances, capas e títulos, frequentador de listas como um vampiro das letras. Tudo numa tacada só.

Mikhail tem uma história sombria na era stalinista, escreveu muito e muito foi censurado, pediu para emigrar e seu pedido foi recusado, levou doze anos para concluir “O mestre e Margarida”, e morreu semanas depois de concluir a revisão do romance aos 49 anos, triste e pobre.

Encontrei no jornal Público, de Portugal, que circulou no dia 26 de agosto de 2001, a reprodução de um texto da carta que Bulgákov escreveu ao escritor Máximo Gorki, em 1929, com o desabafo de alguém que está por um triz. "Todas as minhas peças foram banidas, nenhuma linha do que eu escrevo pode ser impressa e lida. Não tenho encomendas, não recebo qualquer copeque em direitos de autor, ninguém responde aos meus ofícios, às minhas cartas".

Vida de escritor não é um mar de rosas como supõe a vã filosofia de todos os tempos. Bulgókov não virou uma estrela no seu tempo, mas está no céu, como poderia atestar Stephen Hawking. Em 1982, a astrónoma russa Lyudmila Karachkina batizou com o nome dele o asteroide que acabara de descobrir.
Em “O mestre e Margarida”, o diabo e seu séquito invadem Moscou, em 1930, e provocam um caos na cidade. O livro segue uma linha de crítica à Rússia estalinista, com humor ácido e sem trava, humor russo que é carregado de realismo mágico. E tudo começa numa praça, onde dois intelectuais conversam sobre a existência de Deus. Defendem a descrença quanto ao fato de Jesus ter existido, até aparecer o Demônio, que se chama Woland, e meter seu tridente enferrujado na prosa e desqualificar a tese dos dois – um é editor e o outro, poeta. O Diabo diz que Jesus existiu e que ele testemunhou seu julgamento por Pôncio Pilatos e a crucificação.  O título de abertura do capítulo é provocador: ‘Nunca falem com estranhos’.

Ambição, trapaça, traição, o submundo, a loucura coletiva, amores sofridos, bruxarias, uma atmosfera goetheana, que coloca Bulgákov na estante dos clássicos, onde já está o “Doutor Fausto”, de Thomas Man, publicado em 1947, vinte anos antes que o romance de Bulgákov. Man também bebeu na lenda do “Fausto”, de Wolfgang Van Goethe.

Li “O mestre e Margarida” sem muita pressa – até porque o palheiro de nomes russos, às vezes nos fazem perder a agulha e a linha, pela grafia e pela sonoridade. E já no final começou a sentir aquele vazio que deve sofrer todo leitor ao fechar o livro que lhe despertou paixão. Gostaria muito de ler mais do autor, mas as obras dele ainda estão distantes do Brasil. “O mestre e Margarida” ficará na minha fila das releituras de cabeceira, que hoje é mais extensa do que a dos novos livros adquiridos recentemente.
          
  “O mestre e Margarida”, publicado pela Alfaguara, tem 456 página de puro deleite. Foi traduzido do russo por Zoia Prestes e a capa de Victor Burton, mostra o personagem que mais me atraiu na trupe de Woland: o endiabrado gato Behemot.