sexta-feira, 22 de junho de 2018




MOSCOU COMO O DIABO GOSTA


Mikhail Bulgákov num país onde rola a Copa do Mundo. Onde estará Woland?

Acredito que livros sabem traçar seu destino.  E não precisam ser cult, best seller ou besta célere na corrida pelos mais vendidos – aliás, fico com o pé de curupira quando me deparo com fenômenos anunciados, o boom literário e otras cositas más que regem o mercado livreiro. Me sinto leitor avulso e sem compromissos com a academia e com a crítica pouco especializada ou corporativa. Leitura pressupõe liberdade para ler.

Depois de ter sido escrito há 78 anos, em Moscou – não foi publicado à época por ser proibido pelo regime soviético – “O mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, chegou na minha casa, trazendo alegria bem maior do que a Copa da Rússia. Acabei de ler este livro inspirador no domingo do jogo do Brasil com a Suiça, de placar melancólico para a moçada que estava no estádio, principalmente.
No primeiro momento, passou uma nuvenzinha cor de chumbo, sob as minhas neuras de leitor. Por que não li Bulgákov antes? E eu mesmo tento me consolar dizendo que só o li agora, pois este era o momento do encontro.

A primeira tradução para a língua portuguesa foi em 1991, 20 anos depois do fim da União Soviética e assim Portugal abriu passagem para Mikhail Bulgákov ser descoberto pelos países lusófonos. Queria ser como alguns leitores admiráveis como minha querida amiga Meg Guimarães e a mana Elis Marchioni, que se iniciaram em “O mestre e Margarida” bem ante de mim. Daí me sinto um ser anacrônico que tenta se convencer ser um ser atemporal. O que fazer?

O melhor presente é se largar nessa aventura dos livros. Não apenas na leitura em si, mas também saber do autor e dos bastidores do livro. Isso me fez mais lento como leitor que agora sou: o oposto de mim há muitos anos atrás, um devorador de romances, capas e títulos, frequentador de listas como um vampiro das letras. Tudo numa tacada só.

Mikhail tem uma história sombria na era stalinista, escreveu muito e muito foi censurado, pediu para emigrar e seu pedido foi recusado, levou doze anos para concluir “O mestre e Margarida”, e morreu semanas depois de concluir a revisão do romance aos 49 anos, triste e pobre.

Encontrei no jornal Público, de Portugal, que circulou no dia 26 de agosto de 2001, a reprodução de um texto da carta que Bulgákov escreveu ao escritor Máximo Gorki, em 1929, com o desabafo de alguém que está por um triz. "Todas as minhas peças foram banidas, nenhuma linha do que eu escrevo pode ser impressa e lida. Não tenho encomendas, não recebo qualquer copeque em direitos de autor, ninguém responde aos meus ofícios, às minhas cartas".

Vida de escritor não é um mar de rosas como supõe a vã filosofia de todos os tempos. Bulgókov não virou uma estrela no seu tempo, mas está no céu, como poderia atestar Stephen Hawking. Em 1982, a astrónoma russa Lyudmila Karachkina batizou com o nome dele o asteroide que acabara de descobrir.
Em “O mestre e Margarida”, o diabo e seu séquito invadem Moscou, em 1930, e provocam um caos na cidade. O livro segue uma linha de crítica à Rússia estalinista, com humor ácido e sem trava, humor russo que é carregado de realismo mágico. E tudo começa numa praça, onde dois intelectuais conversam sobre a existência de Deus. Defendem a descrença quanto ao fato de Jesus ter existido, até aparecer o Demônio, que se chama Woland, e meter seu tridente enferrujado na prosa e desqualificar a tese dos dois – um é editor e o outro, poeta. O Diabo diz que Jesus existiu e que ele testemunhou seu julgamento por Pôncio Pilatos e a crucificação.  O título de abertura do capítulo é provocador: ‘Nunca falem com estranhos’.

Ambição, trapaça, traição, o submundo, a loucura coletiva, amores sofridos, bruxarias, uma atmosfera goetheana, que coloca Bulgákov na estante dos clássicos, onde já está o “Doutor Fausto”, de Thomas Man, publicado em 1947, vinte anos antes que o romance de Bulgákov. Man também bebeu na lenda do “Fausto”, de Wolfgang Van Goethe.

Li “O mestre e Margarida” sem muita pressa – até porque o palheiro de nomes russos, às vezes nos fazem perder a agulha e a linha, pela grafia e pela sonoridade. E já no final começou a sentir aquele vazio que deve sofrer todo leitor ao fechar o livro que lhe despertou paixão. Gostaria muito de ler mais do autor, mas as obras dele ainda estão distantes do Brasil. “O mestre e Margarida” ficará na minha fila das releituras de cabeceira, que hoje é mais extensa do que a dos novos livros adquiridos recentemente.
          
  “O mestre e Margarida”, publicado pela Alfaguara, tem 456 página de puro deleite. Foi traduzido do russo por Zoia Prestes e a capa de Victor Burton, mostra o personagem que mais me atraiu na trupe de Woland: o endiabrado gato Behemot.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Outubro está próximo e com ele a chegada do meu romance "Berlinda - asas para o fim do mundo", minha primeira aventura literária. Fiz novo blog, Diário da Berlinda.

Mapas, correspondências, cadernos de anotações. O livro. By Ronald Junqueiro

O livro foi escrito a partir da bolsa de criação literária com a qual fui contemplado pela Fundação Nacional de Arte (Funarte), do Ministério da Cultura, em 2010. O romance conta histórias passadas em Berlim e Belém do Pará, ao longo de 20 capítulos. São história de amor, traição, tragédia, solidão, vida. Enquanto espero o lançamento, marcado para o dia 17 de outubro, escrevo um diário. Siga o link:

Diário da Berlinda

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Essa cara de espanto do governo com as denúncias de que o Brasil é alvo da espionagem de Barak Obama é a mesma de quem assiste a filme de Freddy Krugger, espanto com a ficção. Não vamos levar a sério. É exaltação para desviar o foco.

Precisamos olhar pra nossa realidade sem perder o foco. Essa indignação com a indigna ação da espionagem dos Estados Unido no Brasil é coisa do arco da velha... Ou você acha que espionagem é coisa de hoje? Ah, que ingenuidade!
Daí o governo central faz um panelaço desnecessário para desviar nossa atenção do que pedimos: reformas essenciais, mudanças e muito mais... e faça-me o favor! Não estamos pedindo favor, apenas cobrando o que é nosso, como estão sendo aplicados nossos investimentos pulverizados em impostos de pouca visibilidade no que devemos ter como retorno: sistema de saúde bom, boa educação, segurança, um funcional sistema de transporte...
Não existe essa história de governo bonzinho, com bolsas, pacs e outros badulaques... elas não nos dão nada "de grátis". E não podem nos dar o que já é nosso por direito.
Boto fé nessa juventude que virou a voz de outras gerações que pouco fizeram. Tenho ouvido alguns "maduros" senhores e senhoras já passados dos 30 se achando massa crítica do momento e que na verdade são puro verniz. Me poupem! O que fizeram essas gerações com efeito duradouros? Cantam "nossos ídolos ainda são os mesmos" em tom de saudosismo, penduram-se em bons empregos, fazem a unha semanalmente com o esmalte mais fashion do salão de beleza, trocam o carro todo o ano, viajam de férias para lugares badalados, cospem trufas na cara dos outros, fanatizam-se a troco de nada e adoram um holofe - ou um canhão, mesmo que sejam o dublê de corpo.
O novo sempre vem. Ô Abram alas! com a alma da Chiquinha Gonzaga... Bora apoiar essa gente nova que tem voz para não esvaziar e banalizar o movimento... ou, se você for muito pessimista, recolha-se ao quartinho dos entulhos.



sexta-feira, 5 de julho de 2013

Traço novas rotas. Há outros horizontes a serem alcançados. Não tenho instrumentos para calcular as distâncias, por isso me deixo levar,vagamente, no meu tempo, tempo, tempo...

Eu, meus livros e meu mapa de viagem pelo mundo e pela imaginação
Reencontrei o Imarginálico. Nara fez mais um aniversário e sua voz continua vive na minha memória. Não vou abandonar o blog nem chutá-lo feito cachorro morto. Meu diário vai continuar aqui, boiando no espaço e recolhendo alguma coisa perdida no caminho. Ele vai ficar ancorado em um novo blog que estou gerando, o Diário da Berlinda, onde irei falar - ou divagar - sobre a experiência que foi escrever um romance, o "Berlinda - Asas para o fim do mundo", que será lançado no dia 17 de outubro deste ano, no espaço Teatro Estação Gasômetro, no Parque da Residência, no happy hour.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Nara Leão, se fosse viva, faria 70 anos nesta quinta-feira, 19 de fevereiro. É linda a página que a filha dela com Cacá Diegues, Isabel, fez em homenagem à musa da Bossa Nova.

A musa, talento e inteligência para cantar música brasileira

É fundamental para os amantes da música brasileira, dessa música que atravessa o tempo e desafia todos os modismos e arroubos do mercado fonográfico, beberem sempre nessa fonte.
Nara Leão, conhecida como “musa da Bossa Nova” ( veja a página feita por Isabel aqui ), era uma artista refinada e uma cidadã de primeira linha. Durante a ditadura militar, não se calou e lançou críticas aos militares. E as coisas esquentaram para seu lado depois de uma entrevista dada ao jornal “Diário de Notícias, na qual defendia a saída dos militares do poder. Era o ano de 1966 e Nara, aos 24 anos, disparou contra o regime: “numa guerrilha moderna, o nosso exército não serviria para nada (...) “quem está mandando é que deveria ser cassado”. E o jornal seguiu sua vocação de provocar os militares com o título: “Nara é de opinião: Esse Exército não vale nada”.
Os artistas saíram em defesa da doce Nara, ameaçada de prisão. Entre eles, o poeta Carlos Drummond de Andrade, com apelo direto ao presidente da República, o marechal Castelo Branco. E pediu, no poema-manifesto: Não prendam Nara Leão.

Meu honrado marechal
dirigente da nação,
venho fazer-lhe um apelo:
não prenda Nara Leão (...)
A menina disse coisas
de causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
abala a Revolução?
Narinha quis separar
o civil do capitão?
Em nossa ordem social
lançar desagregação?
Será que ela tem na fala,
mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
em vez de Nara, é leão? (...)
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo Cão?
Que é pela paz e amor
e contra a destruição?
Deu seu palpite em política,
favorável à eleição
de um bom paisano – isso é crime,
acaso, de alta traição?
E depois, se não há preso
político, na ocasião,
por que fazer da menina
uma única exceção? (...)
Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
para a voz que, pelos ares,
espalha sua canção.
Meu ilustre marechal
dirigente da nação,
não deixe, nem de brinquedo,
que prendam Nara Leão.

domingo, 1 de janeiro de 2012

O primeiro dia do ano, com sol pela manhã e chuva à tarde, coisa marcante em Belém do Pará, no começo do inverno equatorial da Amazônia. O Dragão deve estar encharcado.



Belém amanheceu com sol quentinho. Mas às duas da tarde a chuva veio saudar o primeiro dia do ano. Deu uma trégua e voltou logo depois. O inverno, como no ano passado, roubou o pôr de sol. Há pouco movimento na cidade. Ressaca de inverno depois de uma noite que sempre me parece uma grande cena de bombardeio.

Marquei o dia com três fotos. Agora me recolho. Pressão 12 x 8, sem grandes emoções. Preguiça macunaímica, apesar de estar com meu nível físico com invejáveis 98%, de dar inveja para quem correu na São Silvestre. Nível intelectual é 49%, bom para cancelar compromissos e nível emocional de 88%, bom para ir a festas e velórios.

Joguei I-Ching, saiu o Wei Chi, que significa ‘antes da conclusão’. O hexagrama que me disse o seguinte:

“Para você este é um momento cheio de oportunidades úteis para obter o que deseja. É uma fase de transição que pode fazer você passar de um estado negativo e problemático a um positivo e sereno. Continue a usar a máxima prudência: o êxito está ao seu alcance e o sucesso próximo”.


Não ganhei na mega sena da virada. Vou ter que me virar por outros meios para sobreviver.

No mais, o ano está apenas bocejando! Eu, sob os efeitos de uma noite feliz e um despertar tranqüilo, sem grandes desordens arrítmicas do meu corações que empurra com a barriga sua fibrilação atrial. Ter ou não ter barriga, eis a questão do coração...
 

sábado, 31 de dezembro de 2011

O sol se foi. Vi quando ele deu adeus a dezembro, no último pôr de sol de 2011. Partiu sem alarde para voltar no primeiro domingo de 2012, sob o signo do Dragão. Feliz Ano Novo!



 
Da minha janela, na Pedreira, 31/12/2011. Belém do Grão Pará


Fui olhar o sol se indo no último dia de dezembro. Acho que ele se foi com ares de cansaço, depois da chuva que caiu em Belém pelo meio da tarde, nublando a saudade que sem a menor cerimônia atribui a si o papel de boa companhia nesses ritos de passagem. São momentos que não se repetem, mesmo que fiquem congelados numa fotografia. Mas hoje fiz sua despedida de 2011 e escolhi três momentos. Não esperei que se fechassem as cortinas para o palco se abrisse para a noite.  Dei adeus a ele, ainda meio-sol, quase minguante.  Acho que ele queria se pôr discretamente, sem fazer alarde, tanto que logo foi engolido pelo horizonte nublado, sem o esperado mergulho por traz da ilhas em frente da cidade onde pega a direção do Japão, quando vai até a última nesguinha dourada e num movimento tão imperceptível  sai de sena, num piscar de olhos...
...Amanhã ele desponta num novo tempo e vou esperá-lo da minha janela. Imagino, agora, que o sol deve estar ardendo em  suas próprias chamas até soprar as cinzas de 2011 que se espalharão no tempo. Ele voltará, com certeza, com os encantos e a força de um novo signo que ele iluminará em 2012, entre a fantasia e a realidade...
...Que venha o Dragão!!!!



segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Saúde é o "xis" de um problema tão velho quanto o descobrimento do Brasil. No Pará, o cidadão enfrenta intermináveis maratonas para ter direito à saúde. Tenho um cartão do SUS e uma certa invejinha de presidentes que têm assistência garantida fora do sistema.

Na Recepção, pacientes têm que ter paciência de Jó enquanto esperam
Chego meia hora antes do exame. Conferi duas vezes: o eletrocardiograma será feito às 13h00. Cheguei antes como fora recomendado no agendamento e já me deparei com a recepção vazia. Dirijo-se a uma funcionária próxima, que faz chamadas para os exames. Pergunto pela pessoa que deveria estar na recepção. Ela é rápida e me responde em dois segundo:

- Espere! A colega volta num instante.

Sento-me na fileira da frente na direção de um ventilador. Do meu lado, um casal de idosos. Pergunto à senhora se ela viu a moça da recepção sair e ela me diz que não. O marido dela tem eletrocardiograma marcado para uma da tarde. Na mesma hora olho o meu entorno e conto mais de trinta pessoas no salão de espera. Cai a ficha: todos estão agendados para o mesmo horário.  Vou até a mulher do microfone e pergunto se a colega dela vai demorar muito e mostro o relógio, faltam cinco minutos para fazer o exame. Ela me pede a requisição e diz que assim que a funcionária chegar, ela mesma repassará a requisição. 

Chega um funcionário e ocupa a recepção. A mulher do microfone vai até ele e pega uma pilha de papéis e volta para a mesa onde ficara minha requisição. Logo é cercada pelas pessoas que estavam na sala como se fosse um assalto. Ela começa a chamar os nomes. O meu é o último. E me junto à multidão que segue uma moça de jaleco branco por um corredor onde há uma fileira de portas indicando que tipo de exame é feito. No final, todos nós dobramos a direita e quem chega primeiro ocupa as cadeiras da fila de espera. Vou até a moça de jaleco e digo que não sabia que precisava ter uma cópia da carteira de saúde, mas que podia fazer o exame e ir fazer uma fotocópia numa Lan House em frente ao hospital. Ela concorda e diz que não vou precisar remarcar o exame por causa desse detalhe. Um alívio. Ela entra numa sala e bate a porta. Minutos depois reaparece novamente para conferir quantos iam fazer eletro. Cai a ficha: não há ordem de chegada. E então a moça do jaleco começa a organizar os pacientes. Pergunta quem é quem é e a idade. Feita a chamada, ela pede atenção e fala sem parar, fica explícito que não irá dirimir dúvidas.

- Bom, aqui ninguém será atendido por ordem de chegada. A prioridade é a idade. Os mais velhos serão atendidos primeiro.

A técnica olha a pilha de requisições e quebra o silêncio. Ninguém tinha dúvidas.  Arregala os olhos e volta à carga.

- Queria dizer que essa prioridade não é absoluta. Se por acaso chegar alguém encaminhado pela urgência e aqui o hospital tem sempre casos de urgência, a prioridade muda. Mais uma coisa: como sempre tem muita gente para fazer eletrocardiograma, o aparelho às vezes fica lento e para de funcionar. Eu espero que hoje tudo corra bem. 

Um homem interrompe a moça do jaleco. Quer saber onde encontra água.

- Minha senhora, estou morrendo de sede e já fiz um tour pelo hospital à procura de água. Me disseram que aqui nessa ala eu encontraria... trouxe até meu copo de plástico.

- Pois lhe informaram errado! – diz a nervosa moça do jaleco e impaciente dá da sentença. – O senhor procure noutra alara do hospital onde tem água e se achar venha me dizer, pois também queria um copo d’água.

O homem sedento nem reclama. Dá meia volta e vai embora. Ela chama os quatro primeiros nomes. Os pacientes entram na sala. Os exames não demoram muito, comenta uma senhora dizendo que o fez outras vezes.  Quando vou procurar uma cadeira para esperar sentado, a moça do jaleco abre a porta pede atenção a todos.  E na lata, informa.

- Temos um problema. A máquina que faz o eletro parou. O computador, que estava lento, não consegue mais responder. Chamamos o técnico. Vocês tenham um pouco de paciência.

Olho o relógio instintivamente. E já se passaram quarenta minutos. E o tempo passa. Já são duas e quinze e o técnico não aparece e as pessoas ficam inquietas, reclamam, começam a contar seus dramas. A sala de espera vira terapia grupal alternativa. O homem que não para sentado, diz que sente uma “dor fina” no peito; a senhora experiente em eletro reclama que chegou muito cedo, que não almoçou e que mora longe; outra senhora diz que vai esperar de qualquer jeito, que não vai remarcar outra vez; a moça reclama que será a última a ser atendida, pois é a mais nova na sala de espera, mas que chegou bem antes que o homem que disse para a moça do jaleco que tinha 6.6 anos.

Uma hora depois o aparelho do eletro voltou a funcionar. A moça do jaleco diz que o deixou um tempinho desligado e uns quarenta minutos depois ele voltou a carregar.  Já caminhamos para as quatro da tarde. No corredor é um passa-passa de macas e cadeiras de rodas. 

Olho em volta e ainda tem umas oito pessoas à espera. 

De repente, uma enxurrada de gente invade as corredoras guiadas por um funcionário magro que pede ordem e garante que todos serão atendidos.  A mulher do senhor que diz estar sentindo uma ”dor fina “no peito pergunta ao funcionário se essas pessoas que chegaram são prioridade. Ele diz que não, que são pacientes da turma das quatro, mas alguns vão fazer teste de esforço físico na esteira.

Uma jovem tenta acalmar o filho, que grita, esperneia e parece ser uma criança hiperativa. A moça do lado diz pra ela não deixar o filho sentar no piso e ficar descalço, pois esse ambiente é muito contaminado.  Mas a mulher não liga. O corredor está mais vazio. O garoto corre de um lado para o outro. A mãe dá um puxão do menino, joga-o numa cadeira ao seu lado. E reclama.

- Marcelo, fica quieto! Esse menino é assim, não para. Ele me deixa esgotada.

Uma senhora magrinha tenta acalmar a jovem. Diz que crianças são assim. E misturando solidariedade com curiosidade, pergunta se a jovem mãe mora longe do hospital e se o menino está com fome.

- Moro no sul... Não, comemos aí  na frente.

- Você mora no sul?

- É, no sul do Pará, em Curionópolis. Levei doze horas de ônibus para chegar aqui em Belém e tenho que pegar ônibus de volta até as sete da noite.

Começo a me sentir no paraíso. Aos poucos o corredor vai se esvaziando.  No final, só eu e uma mulher esperamos nossa vez. Uma das mulheres que estavam na turma de uma hora da tarde sai e olha para nós.

- Foi mais rápido do que eu pensava. Mas eu estranhei a enfermeira colocar só sou ‘pegadores’ em mim. Outra vez que vim, colocaram até na minha perna. – Ela pede para a mulher que está do meu lado confirmar para ela a data em que o exame estará pronto. - Veja pra mim por favor. Acho que a enfermeira marcou dia 27 de dezembro, mas tô achando muito tempo para um exame tão simples.

- Aqui estou vendo que é janeiro – diz a mulher, lendo o pequeno papel com dificuldade e pede para eu olhar também.  Todas duas erraram.

- Minha senhora, a data está errada, – digo, rindo dessas confusões de fila – aqui no protocolo diz para a senhora apanhar o resultado em dezembro do próximo ano, daqui a um ano...

A senhora volta à sala e a enfermeira corrige a data. A mulher do meu lado entra na sala. Eu fico só. Será que se esqueceram de mim. Bato na porta e pergunto se vou ser atendido. A mulher diz que sim, que já era para eu ter entrado. Nem discuto. Vou para a sala do exame. A mulher me mandaeu tirar a camisa. Ela me lambuza de gel e reclama de dor nas costas.

- Veja só a cadeira que uso para fazer o exame... Meu marido vai ter muito trabalho hoje à noite para massagear minha costa, minha coluna está imprestável... amanhã eu não venho trabalhar.

Olho a cadeira, e imagino que não deva ser ergométrica. Parece detonada de tanta bunda que por ela passaram. O exame é rápido. O resultado só sai no dia 27 de dezembro, diz a moça do jaleco branco, que agora se mostra mais simpática. Acabou a maratona da tarde. Ela pega uma pilha de requisições dos exames feitos por ela. Brinco.

- Mas o resultado é para dezembro deste ano ainda?

- Sim, sim... daqui a doze dias volte para apanhar o resultado.

São quase cinco da tarde. Atravesso a rua para tirar uma cópia da minha carteira de saúde para que seja anexada à requisição do eletrocardiograma. Todas as histórias contadas pelo pessoal do corredor de espera se esfumaça. O drama vivido pela moça que veio de Curionópolis e que tem uma irmã com Síndrome de Down que ficou cega; a gravidez de risco a mulher de 29 anos que ficou tão magra a ponto de ter que tomar “injeções de sangue”. São histórias voláteis. E eu nem estava ali como jornalista. Queria viver ao meu modo aquela espera.  Agora falta apenas o exame de sangue. E então, se tudo der certo, marcarei a volta ao cardiologista. Contando nos dedos, lá para janeiro de 2012 consigo encaixar a consulta. Sou otimista, sem saber por quê. Na verdade, não torço contra. Meu desejo é que todos nós estívessemos no paraíso da saúde, recebendo tratamento VIP no Sistema Único de Saúde. Afinal, pagamos tantos impostos e temos tão pouco.

Ano Novo, Vida Nova e um coração que finge estar bem.  Agora tenho a carteira do SUS, digo pra mim cheio de moral e otimismo para alimentar a moral, tipo cobra mordendo o rabo, e sem esconder uma ponta de inveja do ex-presidente da República e ao mesmo tempo solidário a ele, pois saúde um dos males do Brasil é desde a Semana de 22. Parece que vencemos apenas as saúvas. Tomara que ele vença o câncer.

Que venha 2012!!!

terça-feira, 26 de julho de 2011

O dia 26 é um marco. Marco meu retorno ao Imarginálico. Faz um ano da minha ida a Berlin. Rota Brasília, Lisboa, Copenhagen, Berlin. Uma aventura para escrever meu romance.

Um grande mergulho no tempo. Durante este tempo, fiz muitas coisas, como fotografar Berlin, atualizar o alemão na escola Tandem, no antigo bairro de Prenzelauerberg, fotografar a cidade e pesquisar para o livro que leva um ponto final no dia 29 de julho. O romance, "Berlinda - Asas para o fim do mundo" é minha cria, nascida de uma bolsa de criação literária com a qual fui contemplado pela Fundação Nacional de Arte (Funarte). Começa, agora, novo tempo de espera para a edição.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A flôr de Zíaco da língua portuguesa falada no Brasil, daqui às barrancas do Chuí, está no nosso cardápio serve-serve-se de cada dia, onde jamais faltará um churrasquinho de gato Sianês.

O Brasil não conhece o Brasil / Dê um clique na foto.

O Brasil das placas. O humor da língua. Essas pérolas vieram através do e-mail e eu as recolhi no mural que aqui exponho. Abaixo o erro. Viva a criatividade. A briga é entre a Flor de Zíaco e a Última Flor do Lácio, inculta e bela. Ó Olavo Bilac, ou o que resta de vós, ria em seu túmulo, pois a última filha do Latim me deixa morrendo de rir.


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amote assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Aproveito a viagem e sopro um pouco de Bernardo Soares, o outro Fernando Pessoa, poeta que amo tanto, para declarar também meu amor à palavra.
 
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
 
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa . Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

["Livro do Desassossego", por Bernardo Soares. Vol. I, Fernando Pessoa.]

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Estradas da última fronteira é uma exposição que abre novas frentes para vermos a Amazônia numa viagem de quase trinta anos sob a lente de um fotógrafo que foi até onde muitos não foram

Os índios, povos da mata de um admirável mundo novo? Paulo Santos
Água e verde mata, botos reais que inspiram as lendas ouvidas de nossos antepassados e reproduzidas por todas as gerações, o homem da beira do rio, o índio e sua luta pelas reservas ou pelo que lhe foi reservado na floresta, os conflitos, a violência costurando a ocupação, o homem buscando o ouro num garimpo cheio de sonhos e pesadelos, a exuberância cantada em verso e prosa, o encantamento, as grandes indústrias rasgando as veias das riquezas minerais. A devastação. Isso é apenas o resumo de um quadro de extremas contradições na região amazônica, fotografada por Paulo Santos, o roteiro da exposição que abre nesta quinta-feira, 5 de agosto, no Museu Histórico do Estado do Pará.

Paulo Santos, repórter fotográfico dos mais experientes,  reuniu 140 fotografias, que representam a ideia de mostrar a Amazônia em três momentos, que brevemente serão transformados numa coleção de três livros:

“Povos da mata”, no qual busca retratar as áreas remotas da Amazônia, com sua natureza densa, rica, seus acidentes geográficos e seus tipos humanos.

“Estradas da última fronteira”, mostrando o conflituoso processo ainda em curso de ocupação da Amazônia.

“O grande projeto”, um recorte do modelo de desenvolvimento planejado para a Amazônia pelo regime militar a partir da década de 1970, no qual Paulo Santos documenta as grandes obras de infraestrutura, os programas de ocupação humana e os megraprojetos de indução do desenvolvimento, como a abertura da Transamazônica, os planos de colonização.

Paulo Santos lança um olhar nativo no que há de belo e no que há de violento, sem o ranço dos olhares exóticos ou estrangeiros.

Serviço:


Local: Palácio Lauro Sodré – Museu Histórico do Estado do Pará-MHEP – Galeria Antônio Parreiras
Quando: Abertura – 5 /08 /2010 – 19 h.
Visitação Pública: De 06/08/2010 até 24.09/
Endereço: Praça Dom Pedro II s/n – Cidade Velha – Pará-Brasil.

sábado, 17 de julho de 2010

Benjamin nas ruas de Berlin. Eu nas ruas de Belém. Incrível como o autor provoca nossas lembranças. Pode pintar alguma tristeza com o passar do tempo...

Walter Benjamin e eu, uma colagem. Ronald Junqueiro

No ano passado, mais ou menos por setembro, senti saudade de Walter Benjamin. Saudade é isso. Quisera eu tê-lo conhecido. Tempo e história não me permitiram esse encontro. Fiz essa colagem e me senti bem. Descobri a melancolia do olhar que, sem querer, me levou para o meu universo particular. Ou uma cópia desse universo que colo aqui.

O livro ‘Rua de sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900’ foi lançado em 1992, pela editora Relógio d´Água”, de Lisboa, e é apresentado por Susan Sontag.

Quero dizer que não cabem mais resenhas. O livro de Benjamin é uma obra definitiva.

Walter Benjamin é um provocador. Instiga, induz sem piedade. Quer provar? Quem teve um jardim ou passeou por algum jardim mágico, na infância, há de reviver suas memórias lendo este trecho do feiticeiro Walter Benjamin:

"Havia no nosso jardim um pavilhão abandonado e carcomido. Adorava-o pelas suas janelas coloridas. Transformava-me quando, no interior, passava a mão pelas vidraças; adquiria a cor da paisagem que, ora ainda frondosa, se apresentava na minha janela”.

Na minha infância, os cheiros eram mais fortes, o olfato era o sentido mais solicitado. Lembro do taperebazeiro e o tapete de taperebás do quintal de uma tia-avó que morava três quadras da minha casa. Minha aurora querida.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Não importa nada a não ser torcer pelo Brasil, apesar de Dunga. E contra a minha insatisfação ou para acalmar os nervos leio e recito "Pátria", do Poetinha.

Na Doca, bandeiras atraem os corações brasileiros. Ronald Junqueiro


Pátria minha

Vinícius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes."



terça-feira, 22 de junho de 2010

...É que Narciso acha feio o que não é espelho ou poço ou lâmina d´água ou o tampo na mesa polida...

... ou o que pode sugerir seu reflexo. Ronald Junqueiro

Narciso


José Régio (in “Biografia”)

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia:

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!


José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.