MOSCOU COMO O DIABO GOSTA
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Mikhail Bulgákov num país onde rola a Copa do Mundo. Onde estará Woland? |
Acredito que livros sabem traçar seu destino. E não precisam ser cult, best seller ou besta célere na corrida pelos mais vendidos – aliás, fico com o pé de curupira quando me deparo com fenômenos anunciados, o boom literário e otras cositas más que regem o mercado livreiro. Me sinto leitor avulso e sem compromissos com a academia e com a crítica pouco especializada ou corporativa. Leitura pressupõe liberdade para ler.
Depois de ter sido escrito há 78 anos, em
Moscou – não foi publicado à época por ser proibido pelo regime soviético – “O
mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, chegou na minha casa, trazendo
alegria bem maior do que a Copa da Rússia. Acabei de ler este livro inspirador
no domingo do jogo do Brasil com a Suiça, de placar melancólico para a moçada
que estava no estádio, principalmente.
No primeiro momento, passou uma nuvenzinha
cor de chumbo, sob as minhas neuras de leitor. Por que não li Bulgákov antes? E
eu mesmo tento me consolar dizendo que só o li agora, pois este era o momento
do encontro.
A primeira tradução para a língua
portuguesa foi em 1991, 20 anos depois do fim da União Soviética e assim Portugal
abriu passagem para Mikhail Bulgákov ser descoberto pelos países lusófonos.
Queria ser como alguns leitores admiráveis como minha querida amiga Meg
Guimarães e a mana Elis Marchioni, que se iniciaram em “O mestre e Margarida”
bem ante de mim. Daí me sinto um ser anacrônico que tenta se convencer ser um
ser atemporal. O que fazer?
O melhor presente é se largar nessa
aventura dos livros. Não apenas na leitura em si, mas também saber do autor e
dos bastidores do livro. Isso me fez mais lento como leitor que agora sou: o
oposto de mim há muitos anos atrás, um devorador de romances, capas e títulos,
frequentador de listas como um vampiro das letras. Tudo numa tacada só.
Mikhail tem uma história sombria na era
stalinista, escreveu muito e muito foi censurado, pediu para emigrar e seu
pedido foi recusado, levou doze anos para concluir “O mestre e Margarida”, e
morreu semanas depois de concluir a revisão do romance aos 49 anos, triste e
pobre.
Encontrei no jornal Público, de Portugal,
que circulou no dia 26 de agosto de 2001, a reprodução de um texto da carta que
Bulgákov escreveu ao escritor Máximo Gorki, em 1929, com o desabafo de alguém
que está por um triz. "Todas as minhas peças foram banidas, nenhuma linha
do que eu escrevo pode ser impressa e lida. Não tenho encomendas, não recebo
qualquer copeque em direitos de autor, ninguém responde aos meus ofícios, às
minhas cartas".
Vida de escritor não é um mar de rosas
como supõe a vã filosofia de todos os tempos. Bulgókov não virou uma estrela no
seu tempo, mas está no céu, como poderia atestar Stephen Hawking. Em 1982, a
astrónoma russa Lyudmila Karachkina batizou com o nome dele o asteroide que
acabara de descobrir.
Em “O mestre e Margarida”, o diabo e seu
séquito invadem Moscou, em 1930, e provocam um caos na cidade. O livro segue
uma linha de crítica à Rússia estalinista, com humor ácido e sem trava, humor
russo que é carregado de realismo mágico. E tudo começa numa praça, onde dois
intelectuais conversam sobre a existência de Deus. Defendem a descrença quanto
ao fato de Jesus ter existido, até aparecer o Demônio, que se chama Woland, e
meter seu tridente enferrujado na prosa e desqualificar a tese dos dois – um é
editor e o outro, poeta. O Diabo diz que Jesus existiu e que ele testemunhou
seu julgamento por Pôncio Pilatos e a crucificação. O título de abertura do capítulo é
provocador: ‘Nunca falem com estranhos’.
Ambição, trapaça, traição, o submundo, a
loucura coletiva, amores sofridos, bruxarias, uma atmosfera goetheana, que coloca Bulgákov na
estante dos clássicos, onde já está o “Doutor Fausto”, de Thomas Man, publicado
em 1947, vinte anos antes que o romance de Bulgákov. Man também bebeu na lenda
do “Fausto”, de Wolfgang Van Goethe.
Li
“O mestre e Margarida” sem muita pressa – até porque o palheiro de nomes russos,
às vezes nos fazem perder a agulha e a linha, pela grafia e pela sonoridade. E já
no final começou a sentir aquele vazio que deve sofrer todo leitor ao fechar o
livro que lhe despertou paixão. Gostaria muito de ler mais do autor, mas as
obras dele ainda estão distantes do Brasil. “O mestre e Margarida” ficará na
minha fila das releituras de cabeceira, que hoje é mais extensa do que a dos
novos livros adquiridos recentemente.
“O mestre e Margarida”,
publicado pela Alfaguara, tem 456 página de puro deleite. Foi traduzido do
russo por Zoia Prestes e a capa de Victor Burton, mostra o personagem que mais
me atraiu na trupe de Woland: o endiabrado gato Behemot.