quarta-feira, 30 de julho de 2008

Falaêêêê, Pata-de-Vaca!

A indignação de um pode servir de exemplo à indignação coletiva. A atriz Arlete Salles foi à delegacia de polícia da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, registrar queixa contra um mau vizinho que cortou os galhos de uma árvore que ela plantou há dois anos em frente à sua casa.

A gente pensa que briga de vizinho, dessas briguinhas ditas corriqueiras, são coisas do século passado. Ledo engano. O certo é que a Arlete tem suas razões para defender o que cultivou.

Ela diz que além de ter plantado a árvore na calçada, acompanhou o crescimento dela, gastou dinheiro, investiu no seu crescimento e o mau vizinho nem aí. “Ele me desrespeitou, além de me atingir financeiramente porque gastei dinheiro com essa árvore", reclama a atriz. A história é cheia de detalhes, envolve queixa criminal, a famosa frase usada para a falta de diálogo “fale com meu advogado!”. Está nos jornais do dia. O atentado contra a bela “Pata-de-Vaca”, em pleno ciclo da floração, virou caso de polícia.

Proponho a indicação da grande atriz Arlete Salles para o lugar do ministro Carlos Minc, que adora holofotes, ou para secretaria de Meio Ambiente do Pará, onde ninguém consegue frear o holocausto ambiental. Ora, pois! Ponderariam os patrícios. Ora, pois, o cacete a quatro. Precisamos de gente que brigue por uma e por milhões de árvores.

(O Pará registrou o desmatamento de 499 quilômetros quadrados, em junho, contra os 262 quilômetros quadrados observados em maio, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Na Amazônia Legal, o desmatamento, em junho, foi de 870 quilômetros quadrados, 20% menor que os números registrados em maio. O Pará conseguiu se superar e superar a própria região nessa escalada de destruição da floresta. )


Para tornar o dia menos sombrio, uso o argumento de que o poeta é do povo e que sua poesia deve ser lida por todos. Peço desculpas ao poeta por seqüestrar sua poesia do livro e deixá-la aqui, assim, como uma folha solta entre milhões de folhas mortas. Precisamos da poesia para tornar o mundo melhor e florescer. Todo dia é dia de árvore, desde 1957, quando foi publicado o texto.

Fala, amendoeira
Carlos Drummond de Andrade

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios eléctricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

- Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono.Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

- E vais outoneando sozinha?

- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

- Somos todos assim.

- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

- Não me entristeças.

- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.

Um comentário:

Anônimo disse...

Estou tentando outonizar-me com dignidade, querido... Beijo!